CÔNJUGES  E  COMPANHEIROS

 

MIGUEL REALE

 

                        Dentre os artigos da Constituição de 1988 merece especial destaque o de nº 226, que dispõe sobre a criação e as funções das entidades familiares.

                   Em primeiro lugar, é aumentado o número delas que passam a ser três: a formada pelo casamento; a realizada pela união estável entre um homem e uma mulher; e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

                   Equivocam-se aqueles que afirmam não haver hierarquia entre essas entidades familiares, pois é irrecusável o primado conferido à sociedade conjugal, estabelecendo o casamento “comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”.

                   Para demonstrar a posição preeminente da sociedade conjugal,  bastará observar que, segundo o § 3º do citado art. 226, deve a lei facilitar a conversão da união estável em casamento. Ora, não teria sentido essa conversão para um ideal a ser atingido, se o vínculo conjugal não figurasse como o da entidade familiar por excelência.

                   Desse mandamento constitucional resulta, implicitamente, que não há igualdade absoluta de direitos e deveres entre cônjuges e companheiros, dependendo do disposto na lei infraconstitucional que é o Código Civil, o qual disciplina a matéria em três artigos distintos, os de nºs 1.724, 1.725 e 1.790.

                   Pelo primeiro desses mandamentos, “as relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda e educação dos filhos”. Segundo o art. 1.725, “salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”. Cabe observar que, como o novo Código Civil não revogou expressamente as Leis nºs 8.971, de 29 de dezembro de 1994, e 9.278, de 10 de maio de 1996, seus dispositivos sobre “união estável” continuam em vigor, salvo quando em conflito com a superveniente Lei Civil.

                   Bem mais extenso é o Código Civil no tocante às relações entre os cônjuges, dedicando a essa matéria nada menos de 14 artigos, do número 1.639 a 1.652. Dentre eles se destacam os que lhes confere o direito de, “antes de celebrado o casamento, estipular, quanto a seus bens, o que lhes aprouver”; a igualdade absoluta dos cônjuges no concernente ao exercício autônomo de sua profissão; bem como o poder de realizar, independentemente de autorização um do outro, as operações financeiras necessárias à economia doméstica.

                   Todavia, o cônjuge precisará de autorização do outro, exceto no regime de separação absoluta, para alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis, ou pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos.

                   O Código Civil não estende aos companheiros os direitos e deveres conferidos aos cônjuges, muito embora, em certos casos, se possa estabelecer sua aplicação por analogia. Feitas essas observações de caráter geral, cumpre salientar que as maiores diferenças entre cônjuges e companheiros são as relativas ao Direito das Sucessões.

                   Nesse sentido, cumpre assinalar que pelo novo Código Civil o cônjuge passa a ser herdeiro, concorrendo com os descendentes e ascendentes, salvo se casado com o falecido no regime de comunhão universal, ou no de separação de bens, conforme interpretação que, no meu entender, deve ser dada ao Art. 1.829, Inciso I, cuja redação infeliz tem dado lugar a controvérsias. Sobre esse assunto, veja-se o que exponho em meu livro Estudos Preliminares do Código Civil, Editora Revista dos Tribunais, 2.003, págs. 61 e seguintes.

                   Feita essa advertência, lembro, ex vi do Art. 1.832, que se o cônjuge concorrer com descendentes, caber-lhe-á quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.

                   Concorrendo, porém, com ascendente em primeiro grau, conforme estatui o Art. 1.837, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau. Se, por outro lado, o falecido não deixar descendentes ou ascendentes, a herança caberá por inteiro ao cônjuge sobrevivente.

                   A esta altura, cumpre realçar o disposto no Art. 1.844, segundo o qual, “não sobrevivendo cônjuge ou companheiro” (sic), nem parente algum sucessível, ou tendo eles renunciado a herança, esta se devolve ao Município ou ao Distrito Federal, se localizada nas respectivas circunscrições, ou à União, quando situada em território federal. Isto quer dizer que, na união estável, o companheiro se enquadra no Inciso III do Art. 1.829, no concernente à ordem de vocação hereditária.

                   É depois do Art. 1.844 que o Congresso Nacional deveria ter inserido o artigo que dispõe sobre os direitos do companheiro na sucessão do outro, colocando-o, indevidamente, entre as disposições gerais. Refiro-me ao Art. 1.790 que, não obstante sua errônea ubicação, constitui valiosa norma em vigor, nos seguintes termos: “A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a 1/3 (um terço) da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.”

                   O Art. 1.790 substitui o Art. 2º da Lei 8.971, de 1944, a qual não considerava o companheiro herdeiro, limitando-se a conferir-lhe usufruto dos bens do falecido. Nesse ponto é louvável a alteração feita pelos congressistas no tocante à união estável.

         27/03/2004