O   CÓDIGO  CIVIL  E  AS  IGREJAS

MIGUEL REALE

 

                   As relações entre o Estado e a Igreja têm criado, no Brasil, problemas às vezes de difícil solução, como está acontecendo com o novo Código Civil, acusado de ter reduzido as Igrejas a meras “associações civis”, sujeitas a mandamentos estatais.

                   Antes de tecer algumas considerações sobre essa questão, não é demais lembrar que, com o advento da República de 1889, o Estado separou-se da Igreja Católica, que antes  era a religião do Império. Essa vinculação deu lugar a constantes atritos, chegando mesmo a provocar crises de graves conseqüências.

                   A Constituição de 1891 foi explícita nesse ponto, declarando no § 7º do Art. 72 que “nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados”.

                   Por outro lado, refletindo a mentalidade positivista dominante na época, o § 4º do citado Art. 72 proclama que “a República só reconhece o casamento civil”.

                   Já a Constituição de 1934 veio abrandar esse dispositivo, estatuindo em seu Art. 146 que o “casamento perante ministro de qualquer confissão religiosa produz os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que observadas as disposições da lei civil, e tomadas as medidas estabelecidas”.

                   As constituições depois promulgadas, sem fazer mais referência às relações entre o Estado e as Religiões, adotaram, com diversas redações, a orientação supra no que se refere ao casamento religioso.

                   Já a Constituição de 1988 voltou a ter disposição relativa a questão religiosa, fazendo-o de maneira indireta com o Art. 19, inciso I, o qual dispõe: “É vedada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I -  estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com elas ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

                  Isto posto, os mandamentos do Código Civil pertinentes, direta ou indiretamente, às atividades religiosas, devem ser interpretadas em consonância com a Carta Magna, especialmente no tocante à vedação de “embaraços” ao funcionamento dos cultos.

                   Pois bem, tenho recebido questionamentos quanto à aplicação às entidades de caráter religioso das normas do atual Código Civil sobre associações, entendidas estas, conforme Art. 53, as que se constituem “pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos”.

                   Além disso, há o parágrafo único do Art. 62, pelo qual “a fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”.

                   A determinação constitucional de que as entidades estatais não devem “embaraçar” os cultos religiosos e seu funcionamento deve ser entendida cum grano salis, mesmo porque o citado Artigo 19, Inciso I da Carta Magna ressalva “a colaboração de interesse público” entre o Estado e as Igrejas.

                   As Igrejas não são associações civis, pois se constituem livremente de conformidade com os fins que lhes são próprios e decorrem de seus atos constitutivos autônomos.

                   Ressalvada essa independência, é de “interesse público”, porém, que haja autênticas associações civis empenhadas na realização de fins religiosos, as quais não podem ser dominadas por um grupo minoritário que delas se sirva em benefício próprio.

                   A bem ver, que é que o Código Civil exige das associações? Que elas sejam livremente constituídas, independentemente de autorização, desde que haja liberdade de associar-se, com clara determinação dos direitos e deveres comuns, devendo ser indicadas as suas fontes de recursos para sua manutenção.

                   Quanto à sua administração, o Art. 59 estatui que caberá à assembléia geral dos associados eleger os seus dirigentes, a fim de que grupos privilegiados não se eternizem nas posições de mando. Essa eleição não exclui a constituição de órgãos especiais de conformidade com os objetivos visados, obedecidas as exigências próprias de cada entidade.

                   O Código Civil, ao disciplinar a vida das associações e das sociedades, inclusive das empresas, tem por finalidade “democratizá-las”, respeitando-lhes sua necessária autonomia.

                   Também empresas há que se queixam de certas limitações estabelecidas pela nova Lei civil, mas, como salienta o grande jurista Arnoldo Wald, com suas normas “institui-se uma verdadeira democracia empresarial que deve corresponder à democracia política, vigorante em nosso país”.

                   Essa diretriz é extensível a todos os tipos de associações, inclusive as de fins religiosos, sendo, porém, excluídas das determinações do Código as Igrejas como tais, sujeitas apenas às normas fundantes e estruturais de cada culto. Ficam assim preservadas as peculiaridades das Igrejas no que se refere ao seu livre funcionamento.

                   No concernente às fundações instituídas para fins religiosos, elas só podem se beneficiar com os mandamentos do Código Civil, ao exigir este que seu instituidor lhes faça dotação especial de bens livres, com precisa indicação de seus objetivos.

                   Além disso, aqueles, a quem o instituidor, por testamento ou escritura pública, cometer a aplicação do patrimônio por ele outorgado, deverão elaborar o respectivo estatuto, com os órgãos necessários a seu fiel adimplemento.

                   Tudo deve ser feito, em suma, para que a plena autonomia dos cultos religiosos se desenvolva em consonância com os objetivos éticos da sociedade civil.

                                                                                     05/07/03