DIREITOS  E  DEVERES

MIGUEL REALE

 

                   Nossa época parece se caracterizar pela premente e contínua reivindicação de direitos e prerrogativas sem o reconhecimento dos correspondentes deveres e obrigações. Tal postulação está em conflito com o processo histórico da democracia que se aperfeiçoa na medida em que direitos e deveres se correlacionam para assegurar a igualdade de todos no convívio social.

                   Com razão afirma Herbert Spencer que o direito de cada um acaba onde o direito de outrem começa. Antes dele dissera o mesmo Emanuel Kant, no seu inconfundivel estilo transcendental: “age segundo uma norma que possa ter, ao mesmo tempo, o valor de uma lei universal”.

                   Na linha desse entendimento, dirá ainda o filósofo alemão que a pessoa se distingue por seu livre arbítrio e o senso do dever, havendo duas coisas que o deslumbravam: “as estrelas, no mundo exterior, e o imperativo do dever, a boa vontade, no íntimo da consciência”.

                   Mesmo sem o rigorismo do imperativo categórico kantiano (“deves, logo podes”) não há como não reconhecer que na base da convivência humana, que é sempre uma associação de pessoas, está a correlação sincrônica do direito e do dever.

                   Infelizmente, é dessa sintonia que se olvida o homem contemporâneo, esquecido do respeito mútuo, com graves conseqüências na família, na escola, na sociedade em geral.

                   Não vacilo em acrescentar que, ao lado da falta de formação ética, há, em nossos dias, também, carência de formação religiosa, contentando-se muitos com a compreensão da existência tão somente em razão dos nexos naturais do comportamento humano.

                   Não me incluo entre os filósofos da imanência, ou seja, entre os que tudo explicam com fundamento nas leis causais, parecendo-me que para assim pensar e agir a sociedade deveria estar revestida de virtudes exemplares para garantir o bom êxito de sua conduta.

                   Não desprezo, mas antes admiro, a fortaleza dos pensadores destituídos de crença no transcendental, daqueles para os quais, como sustenta Norberto Bobbio, cessada a vida terrena, só haveria “il buio”, a escuridão.

                   Para mim a visão ética da existência humana se completa com a visão religiosa, mesmo sem vinculação com esta ou aquela outra crença, estando convencido de que os tremendos episódios que acabam de enlutar a sociedade paulistana, sob o avassalador predomínio das drogas, são o resultado de uma educação privada dos valores transcendentais.

                   Quando, numa sociedade, prevalece o crescente culto do prazer e da diversão, com desprezo dos deveres éticos, até mesmo o amor filial deixa de ser um valor fundamental na instituição da família, para passar a ser mero e ocasional liame biológico.

                   É a razão pela qual discordo dos jusfilósofos que, encantados com as prodigiosas conquistas da biologia, pretendem explicar os atos e fatos jurídicos  segundo suas leis, à margem dos mandamentos éticos.

                   Posta a questão jurídica no plano “poiético”, isto é, à luz da origem e do desenvolvimento biológicos, os direitos e deveres perdem sua imperatividade axiológica ou valorativa, não havendo mais razão em concebê-los em complementar sintonia.

                   É essa correspondência essencial que está na raiz do ordenamento jurídico, o que levou o grande jurista Santi Romano a conceber a díade “poder- dever” do Estado, cuja soberania, há muito tempo, deixou de ser entendida como competência ilimitada.

                   Nossa vida em sociedade só é possível mediante auto-limitações dos indivíduos e dos entes coletivos, com concessões recíprocas nas mais diversas esferas do comportamento humano.

                   Em uma democracia, entendida classicamente como “governo do povo, pelo povo e para o povo”, as concessões recíprocas, que ela exige de seus membros, somente são possíveis a partir de duas colocações essenciais, a do “direito-dever” e a do “poder-dever”.

                  

                  

                   É sobretudo nos países emergentes que esse entendimento se impõe, sob pena da inviabilidade das reformas constitucionais mais reclamadas pela opinião pública.

                   Como proceder, por exemplo, à revisão da Previdência Social sem haver eliminação, não digo de direitos, mas de prerrogativas e privilégios que vieram sendo acumulados através de leis promulgadas para vantagem de determinadas minorias?

                   Nessa matéria, ouso mesmo ir além do que comumente se entende por “direito adquirido”, não o estendendo a situações abusivas conferidas por leis ordinárias, e até mesmo por decretos-leis, e que uma reforma constitucional pode e deve extirpar em nome da justiça social, que é a justiça da igualdade social.

                   Dir-se-á que a Carta Magna, em seu tão citado § 4º do Art. 60, preserva da alteração constitucional emendas tendentes a abolir, entre outros casos, os “direitos e garantias individuais”, tais como o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, concluindo-se pela impossibilidade de serem revogadas disposições legais que outorgaram ilícitas vantagens a certos servidores públicos, concedendo-lhes vencimentos e proventos gigantescos,  duas ou três vezes superiores aos pagos ao presidente da República e aos ministros do Supremo Tribunal Federal.

                   Muito embora enfrentando a opinião dominante, entendo que não podem figurar entre “os direitos e garantias individuais”, que a Lei Maior protege, os atos abusivos perpetrados pelo legislador ordinário à margem da Constituição e das leis.

                  

21/12/02