EXEMPLO DE CONSCIÊNCIA POLÍTICA

 

MIGUEL REALE

            Embora se trate de fato ocorrido a 23 de outubro passado, o referendo realizado ficará na história republicana como um magnífico exemplo de autoconsciência política. Não se trata do objeto desse referendo em si mesmo, porque no fundo dispensável, mas sim do comportamento do eleitorado.

            Houve, com efeito, repulsa à tentativa de cercear o direito de decidir de andar ou não armado, representando o expressivo “não” a opção pela liberdade de escolha sem ingerência do Estado.

            Um dos problemas maiores de nossa experiência política consiste, em verdade, na extensão da intromissão do Poder Público na faculdade de agir livremente assegurada a cada cidadão.

            Os “limites do poder do Estado”, eis, efetivamente um dos grandes problemas da história contemporânea.

            Se lembrarmos o ocorrido nesse ponto, ao longo dos séculos 19 e 20, encontramos uma coincidência paradoxal entre a questão decisiva da amplitude da ação estatal.

            Se olharmos a posição da chamada Direita, vemos a diretriz primeira do liberalismo no sentido do “Estado mínimo”, incumbido dos serviços da soberania e da segurança interna, nesta incluída a questão fundamental da organização e atividade judiciárias. Eu me lembro que nas aulas admiráveis do Professor Mário Mazagão, em 1932, baseado na Constituição de 1891, ele ensinava que constitucionalmente, o Estado não tinha o dever de cuidar, por exemplo, dos problemas da saúde pública ou dos transportes, missão reservada à iniciativa privada.

            Era essa a posição originária do liberalismo, antes que este cedesse aos reclamos dos cidadãos no sentido de cuidar de outras exigências de caráter social.

            Por outro lado, na Esquerda, o que se reclamava era a organização das forças sociais para defesa dos justos salários e a socialização da propriedade. Karl Marx pregava também o advento do Estado Mínimo, cabendo as organizações sociais a iniciativa e o desenvolvimento dos chamados serviços públicos. O liberal optava pela iniciativa privada; o socialista pelas próprias forças sociais.

            O certo é que, com a era da eletricidade e os progressos da técnica, em todos os setores, o Estado foi crescendo, chamando a si múltiplas atividades antes confiadas aos particulares. Por outro lado, na Esquerda, o ideal de socialização passou a se confundir com o de estatização.

            Hoje em dia, o Estado abrange todas as funções públicas, exercidas quer diretamente, quer através das denominadas “paraestatais”, como as autarquias e as sociedades de economia mista, ao mesmo tempo que alargaram o campo das “concessões de serviços públicos”.

            Com isso, os indivíduos iam perdendo seu campo próprio de ação, vendo delimitado o seu poder de iniciativa.

            O Estado passou a exercer o maior campo de serviços públicos, tornando-se proprietário das entidades que os desempenhavam.

            Mas, em certo tempo, a crise econômico-financeira do Estado redundou na volta da política de iniciativa privada, absorvendo-se a via da desestatização, quer pelo crescente aumento das despesas públicas, quer pelo seu desperdício e a corrupção.

            Pode-se dizer que, hoje em dia, um dos problemas políticos predominante, é esse da privatização ou não dos grandes investimentos de caráter social e técnico.

            Em São Paulo, tivemos, por exemplo, o mito no sentido da estatização, o que determinou a aquisição da parte paulista da antiga Light & Power,  para, em seguida, ressurgir o retorno à privatização, o que se deu com a antiga ELETROPAULO, dividida em várias empresas, em um processo que ainda continua.

            Não se pode dizer qual seja ideal, se a estatização ou a privatização dos serviços públicos, dependendo das circunstâncias ocorrentes. A meu ver, em princípio deve prevalecer a privatização.

            Se assim ocorre, porém, no setor dos serviços públicos, o que se deve defender com toda a ênfase são as atribuições do indivíduo ou, mais amplamente, da personalidade individual e jurídica.

            Pode-se dizer que, hoje em dia, prevalece o pragmatismo na opção pela privatização ou estatização dos serviços públicos, cedendo a mera ideologia às exigências práticas.

            Dir-se-á que, em virtude desse fato, o liberalismo se socializa, e, concomitantemente, o socialismo se liberaliza. Assim é que Norberto Bobbio se tornou um pregador do “socialismo liberal”, pregando a socialização somente onde e quando necessário.

            Eu prefiro falar em “liberalismo social”, porque me parece que a tônica deve incidir sobre as prerrogativas do indivíduo, e não nas da sociedade que facilmente descamba para o exagero da socialização. De qualquer modo, são posições da Esquerda ou da Direita, demonstrando que, no fundo, há uma convergência nas ideologias, o que explica a participação de líderes comunistas ao lado dos liberais para a formação dos governos.

            De um ou de outro, o importante é que a pessoa humana preserve a sua própria ação, não dando ao Estado senão o que lhe é próprio, salvo quando circunstâncias especiais exigirem a intervenção benéfica do Poder Público.

            Um exemplo de necessária intervenção do Estado tivemos com a PETROBRÁS, pois se ele não tivesse interferido, o nosso petróleo ainda estaria no fundo da terra ou do Oceano, ou então nas mãos das multinacionais, como e quando lhes interessasse.

 

            05/11/2005