EXEMPLO DE CONSCIÊNCIA POLÍTICA
Embora se trate de fato ocorrido a 23 de outubro passado, o referendo
realizado ficará na história republicana como um magnífico exemplo de
autoconsciência política. Não se trata do objeto desse referendo em si mesmo,
porque no fundo dispensável, mas sim do comportamento do eleitorado.
Houve, com efeito, repulsa à tentativa de cercear o direito de decidir
de andar ou não armado, representando o expressivo “não” a opção pela
liberdade de escolha sem ingerência do Estado.
Um dos problemas maiores de nossa experiência política consiste, em
verdade, na extensão da intromissão do Poder Público na faculdade de agir
livremente assegurada a cada cidadão.
Os “limites do poder do Estado”, eis, efetivamente um dos grandes
problemas da história contemporânea.
Se lembrarmos o ocorrido nesse ponto, ao longo dos séculos 19 e 20,
encontramos uma coincidência paradoxal entre a questão decisiva da amplitude
da ação estatal.
Se olharmos a posição da chamada Direita, vemos a diretriz primeira do
liberalismo no sentido do “Estado mínimo”, incumbido dos serviços da
soberania e da segurança interna, nesta incluída a questão fundamental da
organização e atividade judiciárias. Eu me lembro que nas aulas admiráveis
do Professor Mário Mazagão, em 1932, baseado na Constituição de 1891, ele
ensinava que constitucionalmente, o Estado não tinha o dever de cuidar, por
exemplo, dos problemas da saúde pública ou dos transportes, missão reservada
à iniciativa privada.
Era essa a posição originária do liberalismo, antes que este cedesse
aos reclamos dos cidadãos no sentido de cuidar de outras exigências de caráter
social.
Por outro lado, na Esquerda, o que se reclamava era a organização das
forças sociais para defesa dos justos salários e a socialização da
propriedade. Karl Marx pregava também o advento do Estado Mínimo,
cabendo as organizações sociais a iniciativa e o desenvolvimento dos chamados
serviços públicos. O liberal optava pela iniciativa privada; o socialista
pelas próprias forças sociais.
O certo é que, com a era da eletricidade e os progressos da técnica, em
todos os setores, o Estado foi crescendo, chamando a si múltiplas atividades
antes confiadas aos particulares. Por outro lado, na Esquerda, o ideal de
socialização passou a se confundir com o de estatização.
Hoje em dia, o Estado abrange todas as funções públicas, exercidas
quer diretamente, quer através das denominadas “paraestatais”, como as
autarquias e as sociedades de economia mista, ao mesmo tempo que alargaram o
campo das “concessões de serviços públicos”.
Com isso, os indivíduos iam perdendo seu campo próprio de ação, vendo
delimitado o seu poder de iniciativa.
O Estado passou a exercer o maior campo de serviços públicos,
tornando-se proprietário das entidades que os desempenhavam.
Mas, em certo tempo, a crise econômico-financeira do Estado redundou na
volta da política de iniciativa privada, absorvendo-se a via da desestatização,
quer pelo crescente aumento das despesas públicas, quer pelo seu desperdício e
a corrupção.
Pode-se dizer que, hoje em dia, um dos problemas políticos predominante,
é esse da privatização ou não dos grandes investimentos de caráter social e
técnico.
Em São Paulo, tivemos, por exemplo, o mito no sentido da estatização,
o que determinou a aquisição da parte paulista da antiga Light & Power,
para, em seguida, ressurgir o retorno à privatização, o que se deu com
a antiga ELETROPAULO, dividida em várias empresas, em um processo que ainda
continua.
Não se pode dizer qual seja ideal, se a estatização ou a privatização
dos serviços públicos, dependendo das circunstâncias ocorrentes. A meu ver,
em princípio deve prevalecer a privatização.
Se assim ocorre, porém, no setor dos serviços públicos, o que se deve
defender com toda a ênfase são as atribuições do indivíduo ou, mais
amplamente, da personalidade individual e jurídica.
Pode-se dizer que, hoje em dia, prevalece o pragmatismo na opção pela
privatização ou estatização dos serviços públicos, cedendo a mera
ideologia às exigências práticas.
Dir-se-á que, em virtude desse fato, o liberalismo se socializa, e,
concomitantemente, o socialismo se liberaliza. Assim é que Norberto Bobbio se
tornou um pregador do “socialismo liberal”, pregando a socialização
somente onde e quando necessário.
Eu prefiro falar em “liberalismo social”, porque me parece que
a tônica deve incidir sobre as prerrogativas do indivíduo, e não nas da
sociedade que facilmente descamba para o exagero da socialização. De qualquer
modo, são posições da Esquerda ou da Direita, demonstrando que, no fundo, há
uma convergência nas ideologias, o que explica a participação de líderes
comunistas ao lado dos liberais para a formação dos governos.
De um ou de outro, o importante é que a pessoa humana preserve a sua própria
ação, não dando ao Estado senão o que lhe é próprio, salvo quando circunstâncias
especiais exigirem a intervenção benéfica do Poder Público.
Um exemplo de necessária intervenção do Estado tivemos com a PETROBRÁS,
pois se ele não tivesse interferido, o nosso petróleo ainda estaria no fundo
da terra ou do Oceano, ou então nas mãos das multinacionais, como e quando
lhes interessasse.
05/11/2005