O NOSSO FEDERALISMO

                                                                                              MIGUEL REALE

                  Costuma-se afirmar, mesmo em monografias doutorais, que, com o advento da República, em 15 de novembro de 1989, ter-se-ia instaurado no Brasil o federalismo a exemplo dos Estados Unidos da América (USA). Cabe, no entanto, fazer referência a relevantes diferenças entre o nosso sistema federativo e o norteamericano.

                  Não há dúvida que foi baixado, naquela data, o Decreto nº 1, que dizia: “Fica proclamada provisoriamente e decretada como forma de Governo da Nação Brasileira a República Federativa. As províncias do Brasil reunidas pelo laço da federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil.”

                  Pelo citado decreto, cada Estado decretaria mais tarde a sua Constituição definitiva, elegendo os seus corpos deliberativos e os seus Governos locais. Enquanto não realizados tais atos, os novos Estados seriam administrados pelos “Governos que hajam proclamado, ou, na falta destes, por governadores delegados do Governo Provisório”.

                  Na realidade, eram publicados vários decretos, dissolvendo as assembléias provisórias, e fixando, em caráter sempre provisório, as atribuições dos governadores dos Estados. Note-se que se cuidou incontinenti de se estabelecer um ordenamento jurídico nacional, bastando lembrar que foi logo designado o dia 15 de setembro de 1890 para a eleição geral da Assembléia Constituinte, obedecidas as normas para tal fim estatuídas.

                  Tais providências imediatas permitiram que, no dia 14 de fevereiro de 1891, fosse promulgada a nova Constituição do Brasil, sendo fixadas as bases de nosso federalismo, segundo projeto de apenas 91 artigos e mais 8 disposições transitórias, e que iria viger por mais de quatro décadas.

                  Muito embora o regime republicano tivesse sido instituído repentinamente, não  pode deixar de causar perplexidade a rapidez com que foram disciplinadas as estruturas jurídico-políticas da Nação. Isso é prova de que, ao contrário do que geralmente se diz, já havia então uma consciência nacional, a qual representa, não há dúvida, um dos legados memoráveis do regime monárquico e de seus grandes líderes retratados por Joaquim Nabuso em seu clássico Um Estadista do Império.

                  O exposto já revela uma substancial diferença entre o nosso e o federalismo ianque. É que, no caso da República do Norte passava-se de uma multiplicidade de Estados, já constituídos, para um pacto federativo (donde a denominação de Estados Unidos da América) enquanto que no Brasil evoluímos de um Estado unitário para uma descentralização administrativa com a outorga de plena autonomia às antigas províncias do Império.

                  Essa distinção histórica importa em conseqüências de vulto que não podem ser esquecidas. É que a federação norteamericana surgiu de um entendimento entre entidades políticas já constituídas, com seus quadros jurídico-políticos delineados de maneira independente, enquanto que no Brasil ocorria processo inverso, mantendo-se a unidade do Direito não constitucional.

                  Isso explica por qual razão o federalismo norteamericano desenvolveu-se sem afetar as várias estruturas jurídicas estaduais, no tocante, por exemplo, aos direitos civil, mercantil e penal, cada Estado preservando, em suma, o que lhe era próprio, a sua distinta organização jurídica. Basta lembrar o caso extremo da Luisiana, que continuou subordinada a um código moldado no francês de Napoleão, enquanto os demais Estados preservavam sua experiência peculiar de common law, de natureza não legislativa, mas judicial-costumeira. Daí a estranheza com que vemos, por exemplo, a adoção lá de pena de morte ou a responsabilidade penal dos menores em uns Estados federativos e em outros não, com contrastes impressionantes no ordenamento jurídico do País.

                  No Brasil, ao contrário, as disposições jurídicas infra-constitucionais continuaram sendo as mesmas em todo o País, ou seja, as que havíamos herdado de Portugal, permanecendo em pleno vigor o Código Filipino e demais estatuições legislativas do Império. Nosso federalismo não foi, pois, integral, mas limitado ao plano político-constitucional.

                  Pense-se no que representou para nós a preservação nacional de nosso Direito Privado, vigendo, sem oposições locais, entre outros, o Código Comercial de 1850, numa experiência jurídica unitária e tradicional, ficando o federalismo adstrito aos problemas da cidadania e do regime político. Não é demais lembrar que a idéia do federalismo já era antiga no Brasil, tendo Ruy Barbosa sido federalista antes de ser republicano.

                  Por outro lado, no Brasil, com a entrada em vigor da Constituição de 1946, os municípios passaram a ter,  esculpidas nas matrizes mesmas de nossa Carta Magna, as linhas de sua autonomia e competência, participando dos tributos nacionais da União. É a razão pela qual tenho dito que, desde então, nosso federalismo tornou-se trino, não podendo mais os Estados organizar livremente seus municípios.

                  Isto posto, que é que, na realidade, recebemos plenamente dos Estados Unidos da América? Foi a forma de governo, o presidencialismo, invenção com que os norteamericanos inovaram criadoramente na teoria do “sistema de poder”, superando o parlamentarismo até então dominante nos domínios do Direito Constitucional, mas isto suscita problemas que transcendem os limites do presente artigo.

                  Como se vê, podemos concluir dizendo que nosso federalismo tem características próprias, com valiosas contribuições originais de nossa gente, demonstrando que em Ciência do Direito não somos um País subdesenvolvido.

23/04/2005