A REALIDADE DO ESTADO NACIONAL

 

 

MIGUEL REALE

 

 

                                                         Na história do liberalismo e do marxismo há convergências deveras paradoxais; ambos pregaram, doutrinariamente, a diminuição progressiva dos poderes do Estado, o primeiro em prol de uma democracia absoluta, pela redução contínua de sua intervenção no mundo econômico; e o segundo devido à socialização alcançada. A doutrina do Estado evanescente prevalece, desse modo, nas linhas ideológicas mais opostas.

                                                         Na realidade, no plano histórico, com o stalinismo, o que prevaleceu foi o estatismo; e com a democracia social, dominou a intervenção do Estado na economia. Embora com objetivos diversos, marxismo e liberalismo levaram a conclusões paralelas, mas sem abandonar no plano doutrinário suas teses preferenciais. É sabido que com a queda do stalinismo, houve queda progressiva do Estado soviético, cuja derrota sobreveio após a política de Mijail Gorbachov.

                                                          Com a globalização, sobretudo no mundo econômico-financeiro, o Estado Nacional perdeu forças, não há dúvidas surgindo governos de composição, com gabinetes com as mais estranhas alianças, liberais unidos a comunistas, com relativa diminuição do poder estatal.

                                                         O certo é que não prevaleceu o liberalismo de Hayeck, nem tampouco a política soviética da URSS, que se esfacelou.

                                                         De outro lado, no entanto, se continua a pregar o perecimento do Estado Nacional o que é, ainda, a meu ver, o grande engano.

                                                         Na situação atual da política universal, está o Estado Nacional, com graus diversos de força, mas com sinais inegáveis de vitalidade. É que o Estado é uma realidade cultural e não mera criação doutrinária.

                                                         A concepção do Estado como simples ordenamento jurídico, como pretendera Kelsen, não encontra apoio na realidade, que se impõe por toda parte, como realidade cultural. Nem tampouco vingou a teoria do ordenamento jurídico mais amplo de Santi Romano.

                                                           A historicidade cultural originária, essencial à sociedade, não se harmoniza com o normativo como pura regra a ser cumprida, pois o dever-ser do Direito já é algo de inserido no social, como o demonstra a teoria tridimensional do Direito.

                                                         A tridimensionalidade não se aplica somente à Ciência do Direito, mas também é válida para a Sociologia Jurídica, uma vez que o fato social, na ordem ou segundo as linhas de seu desenvolvimento verifica-se com organicidade, sobretudo com normas costumeiras.

                                                         A Sociologia demonstra que as relações sociais são transorgânicas, entrelaçando-se em vários sentidos desde as teóricas às pragmáticas, correspondentes às funções múltiplas do ordenamento estatal. É a razão pela qual o Estado é um realidade e não o resultado de simples expressões relacionadas, exigindo sempre a função do poder como algo que lhe é essencial.

                                                         Diz-se, em suma, que, com o advento da globalização, desapareceu o Estado Nacional, mas há duas razões que demonstram que isto não acontece. Em primeiro lugar, o Estado surge como uma razão mínima de relacionamento internacional, por assim dizer, como um ponto de encontro entre o que internacionalmente se ordena. Em segundo lugar, o Estado Nacional é sempre o mínimo de garantia comum da realização do pactuado.

                                                         Não há dúvida que a globalização, máxime quando consagrada com a criação de ordenamentos jurídicos de caráter continental, importa na redução dos poderes das entidades estatais, mas há muito tempo foi superada a tese da soberania como um poder absoluto.

                                                         No meu entender, é a própria expansão da globalidade que vem justificar a presença atuante dos Estados nacionais, mesmo porque, sem eles, desapareceria o suporte das uniões e dos tratados internacionais, visto como há uma correlação essencial entre o que se estabelece no plano transnacional e o que deve ser realizado em cada país.

                                                         Por outro lado, não são apenas questões econômicas e financeiras que estão em jogo no processo de globalização, como o demonstram todas as medidas reclamadas para salvaguarda do alto valor do meio ambiente, a começar do ar e das águas, problema que não pode ser confiado exclusivamente a órgãos de caráter internacional, como pregam alguns ecologistas fanáticos que querem fazer abstração dos patrimônios nacionais.

                                                         Na mesma linha de pensamento põem-se os problemas culturais, não havendo maior risco do que o estabelecimento de um quadro unitário de valores imposto pelas nações mais poderosas, com desprezo do espírito nacional que dá vida e significado às suas produções, desde as religiosas às científicas, das jurídicas às estéticas.

                                                         Por mais que se admita o primado universal de certos valores éticos e intelectuais, que constituem o que costumo denominar invariantes axiológicas, não há como esquecer o que caracteriza cada cultura nacional, objeto de espontânea criação por parte de suas elites e do povo em geral.

                                                         Ora, o valor próprio de cada cultura nacional corresponde à língua falada por sua gente, não obstante o crescente predomínio do inglês como meio universal de comunicação. Isto posto, cabe a cada Estado promover a defesa de seu patrimônio lingüístico, sobretudo nos países, como o Brasil, em que os valores intelectuais próprios são representados pela literatura, mais do que pela filosofia e pelas ciências positivas.

                                                         Há muito tempo o Brasil deixou de ser o “reino dos bacharéis” para se tornar, de um lado, o país dos economistas e empresários, e, do outro, dos homens de letra, historiadores e sociólogos, para os quais a língua portuguesa continua sendo a “última flor do Lácio, inculta e bela”.

                                                         Em ambos os setores é preciso contar com os poderes do Estado Nacional, não para impor planos econômicos ou lingüísticos, mas para dar todo apoio às instituições e academias eu visam preservar o português como raiz e fonte da cultura brasileira, e, ao mesmo tempo, reprimir “o abuso o poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros”, como é expressamente determinado pelo § 4o do Art. 173 da Constituição de 1988.

                                                         25.02.2006