VARIAÇÕES  SOBRE  A  HUMILDADE

MIGUEL REALE

 

                   A humildade, dentre as virtudes que ornam a conduta humana, é uma das mais ricas de significado. Nossos dicionaristas que melhor a interpretam são Caldas Aulete e Antonio Houaiss. O primeiro apresenta-a  como “a virtude com que manifestamos o sentimento de nossa fraqueza ou do nosso pouco ou nenhum mérito”, enquanto que o segundo a considera a “virtude caracterizada pela consciência das próprias limitações”, ou, “um sentimento de fraqueza, de inferioridade, com relação a alguém ou algo”.

                   Trata-se, pois, de modéstia no trato social, caracterizando-se por ser  infensa ao orgulho e à ostentação. Por outro lado, lembram os mestres da língua que ela assinala também o respeito a alguém ou algo tido como superior, sendo, assim, uma forma de submissão.

                   Nessa ordem de idéias, costuma-se afirmar que o sábio, de maneira geral, é humilde, reconhecendo a finitude ou até mesmo a precariedade de seus conhecimentos. Nem sempre, porém, a sabedoria implica modéstia, havendo casos em que a posse da verdade, nas múltiplas áreas de sua aplicação, culmina em atitudes de orgulho e de vaidade. Tudo depende, no fundo, da espécie de homem ou de mulher que se é, podendo a humildade ser tanto uma tendência natural como um estado de espírito adquirido ao fim de uma longa experiência, como bom senso do valor relativo de nossas conquistas.

                   Cabe, outrossim, observar que se pode ser humilde com plena consciência de seu próprio valor, de sua significação em confronto com as pessoas apontadas como representativas da coletividade, preferindo fruir de seu saber como um patrimônio tanto mais precioso quanto mais recatado.

                   Há, por conseguinte, uma infinita multiplicidade de experiências existenciais, a cada uma delas correspondendo uma ou nenhuma forma de humildade. Esta é, como se vê, uma das mais intrigantes variáveis do comportamento humano. Nem deixam de existir formas postiças de humildade, sendo a modéstia taticamente assumida apenas para se grangear fama de criaturas excepcionais, verdadeiros modelos merecedores do respeito social...

                   Não devem ser esquecidos os que parece terem nascido sob o sígno de bem servir, sentindo-se felizes quando se submetem aos mandos e caprichos dos que se projetam na liderança política, econômica, científica ou no variegado mundo das artes e das letras. Nem devem ser considerados seres inferiores, por obedecerem à própria natureza, sentindo-se realizados com os êxitos dos entes que admiram.

                   Pela apontada variabilidade de seus conteúdos, a humildade pode ser considerada um dos pontos referenciais do universo da cultura, embora nem sempre seja analisada com a devida atenção pelos cultores da ética. A bem ver,  deveria ser objeto de constante estudo por parte de psicólogos e sociólogos, sobretudo quando se tem em vista delinear as formas existenciais típicas, para conhecimento cada vez mais apropriado do ser humano e da sociedade.

                   A “figura dos humildes”, eis aí um tema dos mais empolgantes para a imaginação criadora dos literatos, em seus contos, crônicas e romances, e para quantos cuidam de penetrar nos refolhos da consciência ou da alma humana. 

                   Há, todavia, um limite na abdicação da própria personalidade para a glorificação dos méritos alheios, não podendo sair ferida a dignidade da pessoa humana, valor que atualmente figura, no Artigo 1º da Constituição de 1988, como um dos fundamentos do Estado Democrático do Direito.

                   Não posso encerrar estas variações sobre a humildade sem lembrar o que sobre ela escreveram filósofos de todas as correntes de pensamento. Bela síntese dessa história é-nos dada por Nicola Abbagnano em seu Dizionario della Filosofia, após lembrar que a antiguidade clássica não tratou da matéria.

                   A seu ver, foi na Idade Média que surgiram as primeiras manifestações filosóficas sobre o tema objeto do presente artigo, a partir do mistério da incarnação de Deus na figura humilde de Cristo, o deus-homem. Foi então que Tomás de Aquino viu a humildade como parte da virtude “que tempera e freia o ânimo a fim de não se elevar sem medida no culto das coisas mais altas”.

                   Singular é a posição de Espinosa que não aprecia a humildade como virtude, visto nascer ela do sentimento da própria impotência em confronto com seres mais perfeitos, reduzindo-se, assim, a uma “emoção passiva”.

                   Já Kant apresenta a humildade como “o sentimento da pequenês de nosso valor perante a lei” e, ao mesmo tempo, como a pretensão de alcançar um valor moral oculto mediante a renúncia do valor moral de si, considerando ele hipocrisia pretender os favores de Deus ou dos homens graças ao rebaixamento do próprio valor.

                   É analisando as relações agônicas entre o senhor e o escravo, tema tão debatido pela filosofia romântica no século 19, que Hegel diz que a humildade “é a consciência de Deus e da sua  essência como amor”, o que, penso eu, quer dizer que o acesso a Deus depende de nosso humilde amor por ele.

                   Por fim, não há como esquecer a posição de Nietzsche, a qual não podia ser senão a de protesto contra a humildade, vista como um aspecto da “moral dos escravos”.

                   Filosoficamente para mim, a humildade significa a renúncia aos poderes da razão perante os problemas que a transcendem, aos quais acendemos pelas vias do amor. É nessa posição que talvez se situe a humilde confissão de Einstein quando reconhece que “por de trás da matéria há algo de inexplicável”, contrastando com os que, orgulhosos das conquistas da razão no mundo das ciências positivas, negam Deus e a imortalidade da alma. 

                           

                                                                             07/06/2003