VARIAÇÕES
SOBRE O HUMANISMO
MIGUEL
REALE
A todo
instante se ouve dizer que o homem, no seu modo de ser e nas suas relações
deve realizar o humanismo, sendo conveniente tecer algumas considerações sobre
esse assunto.
É preciso distinguir em primeiro lugar, o humanismo como categoria histórica
e como expressão de nosso viver comum. Num primeiro sentido nós nos referimos
àquela época, no fim da Idade Média, em que o homem tomou consciência de si
mesmo, sobretudo pela meditação da obra dos pensadores clássicos da Grécia,
como Platão e Aristóteles. Essa fase marca o início do Renascimento,
caracterizado pela tentativa contínua de explicar os fatos humanos em si
mesmos, nos próprios elementos que os compõem.
De um certo ponto de vista o humanismo, como categoria histórica
assinala uma laicização do pensamento, ou seja, a crescente convicção de que
é possível explicar os fatos humanos sem serem meros reflexos de Deus ou dos
deuses, conforme se pensava em uma divindade una ou plural, esta sob a influência
direta da tradição helênica.
Essa “humanização do homem” ocorreu no século XV e XVI, abrindo
campo para a chamada Idade Moderna, na qual ainda nos encontramos, apesar de
haver vários pensadores que já falam em “pós-moderno”, mas a meu ver, sem
ter sido satisfatoriamente caracterizada essa passagem.
Do exposto já resulta que o humanismo representa um programa de
conhecimento da capacidade criadora do homem em todos os sentidos, valendo-se,
sobretudo, dos recursos da natureza. O que prevalece no humanismo é sempre um
desejo de inovar, de criar coisas novas, vendo no presente sempre uma
oportunidade de instaurar novos valores.
Nesse esforço inovador, o homem assume duas posições complementares,
de um lado desejando conhecer e, do outro, aplicar o conhecimento visando alcançar
o resultado. Abre-se, assim, o campo da ciência em duas grandes direções, uma
descritiva e a outra normativa, isto é, procurando estabelecer regras de
comportamento ou de caráter técnico.
Daí a divisão das ciências em naturais, tendo por base o conhecimento
cada vez maior das leis da natureza, e humanísticas, vendo em todas as
oportunidades um modo de servir à pessoa humana, tida como o valor primordial,
do qual todos os outros decorrem.
Por outro lado, surge a idéia da harmonia necessária no próprio
comportamento humano, tendo como base a solidariedade de todos visando alcançar
uma solução social e política que atenda as aspirações de cada um e de
todos, concomitantemente.
Este ponto é da maior importância, porquanto é nele que vamos
encontrar as raízes da Política e do Direito, e, mais amplamente, da Ética.
Pode-se dizer que esta é a condição primordial do humanismo, e a sua própria
essência.
Como se vê, o humanismo é inseparável da historicidade, isto é, de um
sentido de conquista temporal do que surge, quer espontaneamente no processo
natural, quer em virtude da pesquisa ou da investigação humanas.
No meu entender, não compreendo o humanismo sem historicismo, o que
acaba por exigir a formação de um ideal ético para a humanidade, tendo como
objetivo final a paz universal, como o vislumbrou Emmanuel Kant.
Estou convencido que sem essa visão espiritual, não se pode compreender
nem a Política, nem o Direito, aquela como a ciência e uma arte de traçar um
sistema de liberdade e de igualdade para a comunidade, e o segundo como um
ordenamento tanto do Estado como dos valores individuais segundo um sistema de
normas entre si harmônicas, do qual resulta o sentido superior do dever, ou das
obrigações.
Não há, em verdade, solução humanística sem levar em conta a díade
do poder e do dever. Poder do Estado como responsabilidade pelo que é justo e
atuação no sentido da realização deste; dever como compreensão da própria
conduta que não pode constituir jamais uma categoria absoluta, que facilmente
leva ao abuso.
O humanismo, como resulta do exposto, não se reduz a mero estudo das
aspirações humanas em suas superficialidades, porque envolve sempre uma
investigação profunda e global.
Sob esse prisma é que se compreende por qual razão se entende,
geralmente, como humanística as ciências e as artes que se dedicam ao destino
humano, realizando suas projeções básicas.
Nessa tarefa fundamental, o homem e a mulher devem se empenhar com todas
as forças de que dispõem, cada um de conformidade com o próprio sexo, pois,
no humanismo não se compreende uma competição entre o homem e a mulher, numa
disputa inglória e desesperançada.
Infelizmente temos assistido à renúncia da mulher a uma série de funções
fundamentais, essenciais para ela e para a sociedade, a pretexto de superar o
homem ou igualar-se a ele; o resultado dessa competição é que a mulher tem se
perdido em uma série de atividades negativas para ambos os sexos, como por
exemplo o uso do álcool e das drogas.
Uma das aspirações maiores do humanismo é a igualdade do casal, seja
no casamento, seja na união-estável, de tal modo que seja um modelo para a
coletividade e até mesmo para as relações dos povos.
Finalmente, não se deve esquecer que a consciência humanística implica
um senso de igualdade, quer na sociedade nacional, quer na dos demais povos,
visando a por termo ao colossal desemprego, que assinala a maior crise do
capitalismo.
Onde reina o humanismo, a economia se liga essencialmente à ética, não
tendo apenas a perspectiva do lucro e da riqueza material.
O humanismo é, em suma, uma forma de espiritualismo, cujo valor maior é
o da pessoa humana.
22.10.2005