VARIAÇÕES  SOBRE  A  DIALÉTICA

MIGUEL REALE

 

                   Os autores dos dicionários filosóficos estão acordes em declarar que o termo “dialética”, além de figurar entre os mais complexos e difíceis, não comporta uma definição genérica abrangente de todos os significados até agora dados a essa palavra.

                   De Platão a Aristóteles, dos estóicos a Sartre, passando por Hegel e Marx, a palavra dialética teria as mais contrastantes acepções, ora entendida como forma de conhecimento da verdade, ora como a própria filosofia ou a lógica, sem se esquecer a posição de Kant que a considera a investigação da “aparência”, uma vez afastada a hipótese de significar algo de certo para a razão.

                   Todavia, isto não impede ou talvez explique a continuidade de seu emprego ao se falar em dialética política, histórica, existencial, da conduta, ou do “não”...

                   Sem pretensão de definir, talvez se possa afirmar que, no mais das vezes, ela, genericamente, quer dizer “processo de idéias ou de princípios que se contrapõem a respeito de determinado tema”. No fundo, o fulcro de seu entendimento é a concordia/discordans  que nos faz vislumbrar uma verdade ou uma conjetura em seu processo de realização.

                   Pouco importa que seus debates não culminem no encontro da verdade, porque o que nela essencialmente interessa são as perspectivas conflitantes na busca do verdadeiro.

                   Não há muito tempo, pela influência dominante da ideologia marxista, a dialética era tida como a forma de conhecimento por excelência, sobretudo nos domínios das chamadas “ciências humanas”. E por dialética se entendia a da linha de Hegel, como contraposição entre uma tese e uma antítese, de cuja oposição surgiria, como terceiro termo, uma síntese, expressão compreensiva da verdade almejada.

                   Como é que, depois, essa síntese pode evoluir para novas teses e antíteses em conflito, preservando o contínuo progresso da idéia e da realidade, numa díade inscindível, é o que os filósofos marxistas jamais souberam explicar. Isto não obstante, há autores que perseveram na convicção de que sem síntese superadora da contradição não haveria como falar em dialética.

                   Em meu livro Experiência e Cultura, refiro-me a diversas formas de dialética diferentes do modelo hegeliano ou marxista, formas essas que culminam, por assim dizer, em sínteses abertas, que representam, não o superamento da contradição, mas a correlação tensional entre elementos contrários.

                   Dentre esses tipos de dialética não hegeliana merece destaque a chamada dialética de complementaridade, que é o desenvolvimento do princípio de complementaridade afirmado por Niels Bohr no campo da física. O princípio de complementaridade foi apresentado pelo físico dinamarquês Niels Bohr, tendo por fim superar o conflito surgido na Física entre a teoria corpuscular e a teoria ondulatória da luz.

                   A seu ver, não haveria possibilidade de reduzir uma teoria à outra, e muito menos de ascender a uma síntese superadora de ambas. O que nos cabe fazer é reconhecer que as duas lembradas teorias subsistem uma ao lado da outra, ou, por melhor dizer, em mútua correlação, como teorias distintas e complementares.

                   Essa colocação do problema da “natureza da luz” segundo dois distintos pontos de vista que complementarmente se exigem e se completam seria a única em condição de conciliar a teoria da relatividade de Einstein com a dos quanta de ação de Plank e o princípio de indeterminação de Heisenberg.

                   Como escrevo em meu livro Experiência e Cultura, cuja 2ª edição revista foi recentemente editada pela  Bookseller de Campinas, foi o físico francês Louis de Boglie quem mais profundamente concluiu pela extenção do princípio de complementaridade a todos os domínios das ciências e mesmo da Filosofia.

                   Vale a pena transcrever, embora longo o pronunciamento de Broglie nestes termos: “A dupla natureza corpuscular e ondulatória que tivemos de atribuir aos elementos da matéria levou-nos a pensar que uma mesma realidade se nos pode apresentar sob dois aspectos, que, a princípio, pareciam irreconciliáveis, mas que, na realidade, nunca se encontram em conflito direto. De fato, quando um desses aspectos se patenteia, o outro esvai-se exatamente na medida necessária para que uma flagrante contradição possa sempre ser evitada. (...........) Qualquer que seja o valor que se deva atribuir a tais extensões do conceito de complementaridade, não resta dúvida de que esse conceito é, em si mesmo, de grande importância, e parece susceptível de abrir horizontes completamente novos à reflexão filosófica”.

                   Por força do princípio de complementaridade, opera-se um raciocínio dialético, também denominado “dialética de implicação e polaridade”, segundo a qual os elementos em contraste não se fundem, mas, ao contrário, se correlacionam, mantendo-se distintos.

                   É a dialética de complementaridade aplicável no mundo jurídico, sendo, a meu ver, a norma o enunciado resultante da correlação fato-valor, ou seja da causalidade factual em contraposição à causalidade axiológica ou “motivacional”, conforme dizer de Edmund Husserl.

                   De acordo com a Teoria Tridimensional do Direito, não há norma legal sem a motivação axiológica dos fatos sobre os quais os valores incidem. Daí a compreensão da norma jurídica como elemento integrante da relação fático-valorativa. Não é demais lembrar que só surgiu a citada teoria quando se reconheceu que fato, valor e norma se dialetizam de maneira complementar.

                   Daí a necessidade de ser a norma jurídica sempre objeto de interpretação, não como um objeto ideal, - como se fosse uma asserção lógico-sintética – mas sim como um enunciado em necessária correlação com a base fático-axiológica. É a razão pela qual distingo o “normativismo jurídico concreto” do “normativismo puro” de Hans Kelsen.

22/12/2003