VISÃO GERAL DO PROJETO DE CÓDIGO CIVIL

Tramitação do Projeto

O Projeto do Código Civil foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 1984, após cuidadoso estudo e debate de 1.063 emendas, o que não deve causar estranheza por tratar-se de uma lei com cerca de 2.100 artigos. Além de haver muitas emendas repetidas, a maioria delas não foi aceita pelo plenário.
Foi relevante a contribuição da Câmara dos Deputados, graças ao magnífico trabalho dos relatores de cada uma das seis partes do projeto, sendo, afinal, relator geral o saudoso deputado Ernani Satyro, cujo trabalho não posso deixar de enaltecer.
Não menos relevante foi a contribuição do Senado Federal que, em novembro de 1997, aprovou o Projeto com 332 emendas propostas pela Comissão Especial, com base no magnífico Parecer final de autoria do eminente Relator Geral, Senador Josaphat Marinho, a quem a Nação fica a dever, bem como ao preclaro Presidente Antonio Carlos Magalhães, decisão de tão grande alcance para a sociedade brasileira.
Sinto-me à vontade para pronunciar-me sobre o projeto, pois este, embora preservado em sua estrutura e valores iniciais, ultrapassou a pessoa de seus elaboradores, os eminentes jurisconsultos José Carlos Moreira Alves (Parte Geral); Agostinho de Arruda Alvim (Direito das Obrigações); Sylvio Marcondes (Direito de Empresa); Ebert Vianna Chamoun (Direito das Coisas); Clóvis do Couto e Silva (Direito de Família); Torquato Castro (Direito das Sucessões), quatro dos quais já falecidos. A mim me coube o papel de coordenador-geral, propondo a estrutura ou sistemática do projeto, que foi aceita pelos colaboradores, sem prejuízo, é claro, de elaborar os textos que considerasse necessário acrescentar ou substituir, como de fato ocorreu.
Cabe-me esclarecer que a grande demora na manifestação do Senado Federal se deve às profundas alterações políticas que caracterizaram a passagem do sistema militar para o regime democrático. Sobreveio, depois, a Assembléia Nacional Constituinte, entendendo os senadores que era necessário aguardar a nova Constituição, que poderia alterar as bases da legislação privada.
A bem ver, porém, a nova Carta Magna, no concernente à Parte Geral, Obrigações, Direito de Empresa, Direitos Reais e Sucessões,, não fez senão confirmar o "sentido social" que presidiu a feitura do projeto, pouco ou nada havendo a modificar. Foi apenas no campo do Direito de Família que sobrevieram mudanças essenciais, que por sinal vieram corresponder às emendas oferecidas no Senado pelo pranteado senador Nelson Carneiro e outros. Desse modo foi possível adaptar facilmente o projeto ao texto constitucional, conforme já previra ao manifestar-me sobre elas, em estudo que fiz a pedido do relator-geral na Câmara Alta, o senador Josaphat Marinho.

Considerações preliminares

Em um País há duas leis fundamentais, a Constituição e o Código Civil: a primeira estabelece a estrutura e as atribuições do Estado em função do ser humano e da sociedade civil; a segunda se refere à pessoa humana e à sociedade civil como tais, abrangendo suas atividades essenciais. É claro que nas nações anglo-americanas, de tradição costumeira-jurisprudencial, não há códigos privados, mas não deixa de haver normas civis básicas no sistema do common-law.
É a razão pela qual costumo declarar que o Código Civil é "a constituição do homem comum", devendo cuidar de preferência das normas gerais consagradas ao longo do tempo, ou então, de regras novas dotadas de plausível certeza e segurança, não podendo dar guarida, incontinenti, a todas as inovações ocorrentes. Por tais motivos não há como conceber o Código Civil como se fosse a legislação toda de caráter privado, pondo-se ele antes como a "legislação matriz", a partir da qual se constituem "ordenamentos normativos especiais" de maior ou de menor alcance, como, por exemplo, a lei das sociedades anônimas e as que regem as cooperativas, mesmo porque elas transcendem o campo estrito do Direito Civil, compreendendo objetivos e normas de natureza econômica ou técnica, quando não conhecimentos e exigências específicas.
É essa a razão pela qual, desde o início, fixei como uma das normas orientadoras da codificação, que me fora confiada, a de destinar à legislação especial aditiva todos os assuntos que ultrapassassem os lindes da área civil ou implicassem problemas de alta especificidade técnica.
Nessa ordem de idéias, não teria sentido inserir-se no Projeto dispositivos sobre inseminação artificial, desde as mais variadas formas de geração extra-uterina até a chamada concepção in vitro, pois tais processos envolvem questões que transbordam do campo jurídico, alargando-se pelos domínios da medicina e da engenharia genética, implicando problemas tanto de bioética quanto de direito administrativo e de direito processual, a fim de atender a exigências de segurança e certeza no concernente à maternidade ou à paternidade. Eis aí uma esfera onde a legislação especial se põe como a única apropriada.
A análogas conclusões chagaríamos no que se refere a múltiplas inovações de ordem tecnológica ou econômica, que, ou encontram solução nas matrizes mesmas do Código Civil, à luz de seus princípios e de seus institutos ou figuras típicas, ou, então, somente poderão ser adequadamente resolvidos mediante leis especiais.

Estrutura do Código

A iniciativa de um novo Código Civil não surgiu de repente. Foi, ao contrário, conseqüência de duas tentativas anteriores que já demarcaram as condições que deveriam ser evitadas ou, então, complementadas.
Em primeiro lugar, abandonou-se a idéia de dividir o Código Civil, elaborando-se, em separado, um Código das Obrigações. A quase unanimidade de nossos juristas repudiou a proposta de um Código Civil decepado e sem sentido de unidade, condenando a eliminação da Parte Geral, tradicional em nosso Direito, desde a Consolidação das Leis Civil, graças ao gênio criador de Teixeira de Freitas.
Como responsável pela codificação, não vacilei no sentido de preferir uma sistematização ampla, embora partindo do Código em vigor. Como já disse, foi fixado o critério de preservar, sempre que possível, as disposições do código atual, porquanto de certa forma cada texto legal representa um patrimônio de pesquisa, de estudos, de pronunciamentos de um universo de juristas. Há, por conseguinte, todo um saber jurídico acumulado ao longo do tempo, que aconselha a manutenção do válido e eficaz, ainda que em novos termos. Por outro lado, é inegável que o código atual obedeceu, repito, como era natural, ao espírito de sua época, quando o individual prevalecia sobre o social. É, por isso, próprio de uma cultura fundamentalmente agrária, onde predominava a população rural e não a urbana. A mudança do Brasil no presente século foi de tal ordem que o código não poderia deixar de refletir essas alterações básicas, uma vez que o Código Civil não é senão a constituição da sociedade civil. Como costumo dizer, e repito, o Código Civil é a constituição do homem comum.
É preciso, porém, corrigir, desde logo, um equívoco que consiste em dizer que tentamos estabelecer a unidade do Direito Privado. Esse não foi o objetivo visado. O que na realidade se fez foi consolidar e aperfeiçoar o que já estava sendo seguido no País, que era a unidade do direito das obrigações. Como o Código Comercial de 1850 se tornara completamente superado, não havia mais questões comerciais resolvidas à luz do Código de Comércio, mas sim em função do Código Civil. Na prática jurisprudencial, essa unidade das obrigações já era um fato consagrado, o que se refletiu na idéia rejeitada de um código só para reger as obrigações, consoante projeto elaborado por jurisconsultos da estatura de Orozimbo Nonato, Hahnemann Guimarães e Philadelpho de Azevedo. Não vingou também a tentativa de, a um só tempo, elaborar um Código das Obrigações, de que foi relator Caio Mário da Silva Pereira, ao lado de um Código Civil, com a matéria restante, conforme projeto de Orlando Gomes. Depois dessas duas malogradas experiências, só restava manter a unidade da codificação, enriquecendo-a de novos elementos, levando em conta também as contribuições desses dois ilustres juris consultos.
A opção pela unidade das obrigações nos levou a alterar a ordem da matéria. O código atual, como é próprio da sociedade de natureza agrária, começa com o Direito de Família, passando pelo Direito de Propriedade e das Obrigações, até chegar ao das Sucessões.
Nosso projeto, após a Parte Geral – na qual se enunciam os direitos e deveres gerais da pessoa humana como tal, e se estabelecem pressupostos gerais da vida civil – começa, na Parte Especial, a disciplinar as obrigações que emergem dos direitos pessoais. Pode-se dizer que, enunciados os direitos e deveres dos indivíduos, passa-se a tratar de sua projeção natural que são as obrigações e os contratos.
É extensa essa disciplina das obrigações, dado o tratamento unificado das obrigações civis com as obrigações empresariais, termo que preferimos adotar, pois a atividade econômica não se assinala mais, hoje em dia, por atos de comércio, tendo uma projeção muito mais ampla, sendo igualmente relevantes os de natureza industrial ou financeira.
Em seguida ao Direito das Obrigações, passamos a contar com uma parte nova, que é o Direito de Empresa. Este diz respeito a situações em que as pessoas se associam e se organizam a fim de, em conjunto, dar eficácia e realidade ao que pactuam. O Direito de Empresa não figura, como tal, em nenhuma codificação contemporânea, constituindo, pois, uma inovação original.
Daí se passa ao Direito das Coisas, sendo o Direito Real visto em razão do novo conceito de propriedade, com base no princípio constitucional de que a função da propriedade é social, superando-se a compreensão romana quiritária da propriedade em função do interesse exclusivo do indivíduo, do proprietário ou do possuidor. Em seguida ao Direito das Coisas é que vem o Direito de Família e, posteriormente, o Direito das Sucessões. Houve, por conseguinte, uma alteração relevante na estrutura do código, a qual não encontra símile na codificação dos demais países.
Quando começamos nosso trabalho, tínhamos idéia de conservar, quando possível, consoante já foi dito, as disposições do código atual. Mas, à medida que os trabalhos foram se desenvolvendo, foi se revelando a impossibilidade de nos mantermos inteiramente fiéis a essa diretriz inicial. É que problemas novos exigem formulação nova, sendo a linguagem inseparável do conceito. Preferiu-se uma linguagem nova, mais operacional e adequada à precisa interpretação das normas referentes aos problemas atuais. Há, portanto, um sentido de atualidade ou de contemporaneidade ínsito no projeto, inclusive no tocante à linguagem, eliminados que foram arcaísmos e superados modos de dizer.

 O princípio de socialidade

O "sentido social" é uma das características mais marcantes do projeto, em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código Civil ainda em vigor. Seria absurdo negar os altos méritos da obra do insigne Clóvis Bevilaqua, mas é preciso lembrar que ele redigiu sua proposta em fins do século passado, não sendo segredo para ninguém que o mundo nunca mudou tanto como no decorrer do presente século, assolado por profundos conflitos sociais e militares.
Se não houve a vitória do socialismo, houve o triunfo da "socialidade", fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana. Por outro lado, o projeto se distingue por maior aderência à realidade contemporânea, com a necessária revisão dos direitos e deveres dos cinco principais personagens do Direito Privado tradicional: o proprietário, o contratante, o empresário, o pai de família e o testador.
Nosso empenho foi no sentido de situar tais direitos e deveres no contexto da nova sociedade que emergiu de duas guerras universais, bem como da revolução tecnológica e da emancipação plena da mulher. É por isso, por exemplo, que acabei propondo que o "pátrio poder" passasse a denominar-se "poder familiar", exercido em conjunto por ambos os cônjuges em razão do casal e da prole.
Em virtude do princípio de socialidade, surgiu também um novo conceito de posse, a posse-trabalho, ou posse "pro labore", em virtude da qual o prazo de usucapião de um imóvel é reduzido, conforme o caso, se os possuidores nele houverem estabelecido a sua morada, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. Por outro lado, foi revisto e atualizado o antigo conceito de posse, em consonância com os fins sociais da propriedade.

O princípio de eticidade

O Código atual peca por excessivo rigorismo formal, no sentido de que tudo se deve resolver através de preceitos normativos expressos, sendo pouquíssimas as referências à eqüidade, à boa-fé, à justa causa e demais critérios éticos. Esse espírito dogmático-formalista levou um grande mestre do porte de Pontes de Miranda a qualificar a boa-fé e a eqüidade como "abecenrragens jurídicas", entendendo ele que, no Direito Positivo, tudo deve ser resolvido técnica e cientificamente, através de normas expressas, sem apelo a princípios considerados metajurídicos. Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios etico-jurídicos que permita chegar-se à "concreção jurídica", conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou equitativa.
O novo Código, por conseguinte, confere ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto.
Como se vê, ao elaborar o projeto, não nos apegamos ao rigorismo normativo, pretendendo tudo prever detalhada e obrigatoriamente, como se na experiência jurídica imperasse o princípio de causalidade próprio das ciências naturais, nas quais, aliás, se reconhece cada vez mais o valor do problemático e do conjetural.
O que importa numa codificação é o seu espírito; é um conjunto de idéias fundamentais em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se sistematizam.
Em nosso projeto não prevalece a crença na plenitude hermética do Direito Positivo, sendo reconhecida a imprescindível eticidade do ordenamento. O código é um sistema, um conjunto harmônico de preceitos que exigem a todo instante recurso à analogia e a princípios gerais, devendo ser valoradas todas as consequências da cláusula rebus sic stantibus. Nesse sentido, é posto o princípio do equilíbrio econômico dos contratos como base ética de todo o Direito Obrigacional.
Nesse contexto, abre-se campo a uma nova figura, que é a da resolução do contrato como um dos meios de preservar o equilíbrio contratual. Hoje em dia, praticamente só se pode rescindir um contrato em razão de atos ilícitos. O direito de resolução obedece a uma nova concepção, porque o contrato desempenha uma função social, tanto como a propriedade. Reconhece-se, assim, a possibilidade de se resolver um contrato em virtude do advento de situações imprevisíveis, que inesperadamente venham alterar os dados do problema, tornando a posição de um dos contratantes excessivamente onerosa.
Tal reconhecimento vem estabelecer uma função mais criadora por parte da Justiça em consonância com o princípio de eticidade, cujo fulcro fundamental é o valor da pessoa humana como fonte de todos os valores. Como se vê, o novo código abandonou o formalismo técnico-jurídico próprio do individualismo da metade deste século, para assumir um sentido mais aberto e compreensivo, sobretudo numa época em que o desenvolvimento dos meios de informação vêm ampliar os vínculos entre os indivíduos e a comunidade.

O princípio da operabilidade

O terceiro princípio que norteou a feitura deste nosso Projeto – e vamos nos limitar a apenas três, não por um vício de amar o trino, mas porque não há tempo para tratar de outros, que estão de certa maneira implícitos nos que estou analisando – o terceiro princípio é o "princípio da operabilidade". Ou seja, toda vez que tivemos de examinar uma norma jurídica, e havia divergência de caráter teórico sobre a natureza dessa norma ou sobre a convivência de ser enunciada de uma forma ou de outra, pensamos no ensinamento de Jhering, que diz que é da essência do Direito a sua realizabilidade: o Direito é feito para ser executado; Direito que não se executa – já dizia Jhering na sua imaginação criadora – é como chama que não aquece, luz que não ilumina, O Direito é feito para ser realizado; é para ser operado. Porque, no fundo, o que é que nós somos – nós advogados? Somos operadores do direito: operamos o Código e as leis, para fazer uma petição inicial, e levamos o resultado de nossa operação ao juiz, que verifica a legitimidade, a certeza, a procedência ou não da nossa operação – o juiz também é um operador do Direito; e a sentença é uma renovação da operação do advogado, segundo o critério de quem julga. Então, é indispensável que a norma tenha operabilidade, a fim de evitar uma série de equívocos e de dificuldades, que hoje entravam a vida do Código Civil.
Darei apenas um exemplo. Quem é que, no Direito Civil brasileiro ou estrangeiro, até hoje, soube fazer uma distinção nítida e fora de dúvida, entre prescrição e decadência? Há as teorias mais cerebrinas e bizantinas para se distinguir uma coisa de outra. Devido a esse contraste de idéias, assisti, uma vez, perplexo, num mesmo mês, a um Tribunal de São Paulo negar uma apelação interposta por mim e outros advogados, porque entendia que o nosso direito estava extinto por força de decadência; e, poucas semanas depois, ganhávamos, numa outra Câmara, por entender-se que o prazo era de prescrição, que havia sido interrompido! Por isso, o homem comum olha o Tribunal e fica perplexo. Ora, quisemos pôr um termo a essa perplexidade, de maneira prática, porque o simples é o sinal da verdade, e não o bizantino e o complicado.
Preferimos, por tais motivos, reunir as normas prescricionais, todas elas, enumerando-as na Parte Geral do Código. Não haverá dúvida nenhuma: ou figura no artigo que rege as prescrições, ou então se trata de decadência. Casos de decadência não figuram na Parte Geral, a não ser em cinco ou seis hipóteses em que cabia prevê-la, logo após, ou melhor, como complemento do artigo em que era, especificamente, aplicável.
Qual é o tratamento dado à decadência? Há, por exemplo, o direito do doador de revogar a doação feita, por ingratidão. Aí, o prazo é tipicamente de decadência. E então a norma vem acoplada à outra: a norma de operabilidade está jungida ao direito material. Como se vê, cada norma de decadência está acoplada ao preceito cuja decadência deve ser decretada. De maneira que, com isso, não há mais possibilidade de alarmantes contradições jurisprudenciais.
O critério da operabilidade leva-nos, às vezes, a forçarmos um pouco, digamos assim, os aspectos teoréticos. Vou dar um exemplo, para mostrar que prevalece, às vezes, o elemento de operabilidade sobre o elemento puramente teorético-formal. Qual é o prazo de responsabilidade de um construtor, pela obra que ele entregou, numa empreitada de material e de lavor, ou seja, de mão-de-obra e com fornecimento de material? É um prazo de cinco anos – um prazo extenso. Porém estabelecemos que, não obstante a aparência de uma norma prescritiva, ela devia ser colocada como norma de decadência, para que não houvesse dúvida na jurisprudência, nem dúvida na responsabilidade, quer do proprietário, quer do empresário, um a exigir uma responsabilidade, outro a fazer face àquilo que assumiu como obrigação contratual.
Isto posto, o princípio da operabilidade leva, também, a redigir certas normas jurídicas, que são normas abertas, e não normas cerradas, para que a atividade social mesma, na sua evolução, venha a alterar-lhe o conteúdo através daquilo que denomino "estrutura hermenêutica". Porque, no meu modo de entender, a estrutura hermenêutica é um complemento natural da estrutura normativa. E é por isso que a doutrina é fundamental, porque ela é aquele modelo dogmático, aquele modelo teórico que diz o que os demais modelos jurídicos significam.
Estão verificando que tivemos em vista esses três princípios, e outros também, que levam em conta a concreção humana. Poderia acrescentar, aqui, o "princípio da concretitude", que, de certo modo, está implícito no de operabilidade. Concretitude é palavra que tem sido, às vezes discutida: há quem queira concretude. Mas, se nós formos ao Dicionário Aurélio, veremos que ele não registra "concretude" e sim "concretitude", assim como há "negritude", "plenitude", e assim por diante, segundo o espírito de nossa língua.
Concretitude, que é? É a obrigação que tem o legislador de não legislar em abstrato, para um indivíduo perdido na estratosfera, mas, quanto possível, legislar para o indivíduo situado: legislar para o homem enquanto marido; para a mulher enquanto esposa; para o filho enquanto um ser subordinado ao poder familiar. Quer dizer, atender às situações sociais, à vivência plena do Código, do direito subjetivo como uma situação individual; não um direito subjetivo abstrato, mas uma situação subjetiva concreta. Em mais de uma oportunidade ter-se-á ocasião de verificar que o Código preferiu, sempre, essa concreção para a disciplina da matéria.
Fixadas essas linhas gerais, agora desejo focalizar alguns exemplos de confronto entre o Código atual e o Projeto do novo Código, que já foi aprovado pelo Senado.

II

Inovações imprescindíveis

Já fiz referência ao caráter excessivamente individualista do Código atual, mas, se procuramos corrigir sua vinculação aos valores de uma superada sociedade agrária, nem por isso deixamos de salvaguardar, sempre que possível, como já salientado, as suas disposições ainda válidas, especialmente com a conservação da Parte Geral, a qual foi mantida de acordo com a grande lição que nos vem de Teixeira de Freitas.
Houve, porém, necessidade de atender às novas contribuições da civilística contemporânea no que se refere, por exemplo, à disciplina dos negócios jurídicos, à necessidade de regrar unitariamente as obrigações civis e as mercantis, com mais precisa distinção entre associação civil e sociedade empresária, cuidando de várias novas figuras contratuais que vieram enriquecer o Direito das Obrigações, sem se deixar de dar a devida atenção à preservação do equilíbrio econômico do contrato, nos casos de onerosidade excessiva para uma das partes, bem como às cautelas que devem presidir os contratos de adesão para salvaguardar os interesses do consumidor.
Além disso, foram estabelecidas as normas gerais dos títulos de crédito, mantendo-se a legislação especial para disciplina de suas diversas figuras; assim como fixadas regras mais adequadas em matéria de responsabilidade civil, que o Código atual ainda subordina à idéia de culpa, sem reconhecer plena e claramente os casos em que a responsabilidade deve ser objetiva, atendendo-se às conseqüências inerentes à natureza e à estrutura dos atos e negócios jurídicos como tais.
É difícil enumerar todas as inovações trazidas pelo projeto, desde uma rigorosa separação entre prescrição e decadência, aquela disciplinada na Parte Geral, e esta prevista em cada caso ocorrente, - em conexão com o artigo que lhe diz respeito. Desse modo, fica superada de vez a interminável dúvida sobre se determinada disposição é de prescrição ou de caducidade. Por outro lado, merece especial menção a distinção fundamental entre Direito pessoal e Direito real de Família, ou, então, as disposições sobre condomínio edilício (demoninação a princípio criticada, e que já é de uso corrente) ou a restauração do antigo direito de superfície sob novas vestes, o que demonstra que não nos dominou o desejo de só oferecer novidades.
Cumpre também salientar que o projeto não abrange matérias que envolvam questões que vão além dos lindes jurídicos, como é o caso das sociedades por ações, objeto de lei especial. Por outro lado, é próprio de um código albergar somente questões que se revistam de certa estabilidade, de certa perspectiva de duração, sendo incompatível com novidades ainda pendentes de maiores estudos, abrangendo problemas de ordem científica, como é o caso já lembrado, da fecundação artificial. O projeto limita-se, por conseguinte, àquilo que é da esfera civil, deixando para a legislação especial a disciplina de assuntos que dela extrapolem, como é o caso da "incorporação de condomínios edilícios".
Eis ai algumas diretrizes de um projeto que, repito, não mais nos pertence, pois ele foi publicado por três vezes, recebendo sempre sugestões que, após o devido estudo, deram lugar a alterações que, progressivamente vieram aperfeiçoando e atualizando nossa proposta inicial, até as últimas mudanças feitas no Senado. É uma tolice, por conseguinte, afirmar-se que o projeto estaria superado por ter sido proposto à Câmara dos Deputados em 1975... O curioso é que quem apoda o projeto de velhice, pleiteia a manutenção do atual Código Civil que é de 1916!...

Críticas apressadas ou inoportunas

Outra crítica apressada e absolutamente sem sentido diz respeito ao fato de o código não ter cuidado da união estável de pessoas do mesmo sexo. Essa matéria não é de Direito Civil, mas sim de Direito Constitucional, porque a Constituição criou a união estável entre um homem e uma mulher. De maneira que, para cunhar-se aquilo que estão querendo, a união estável dos homossexuais, em primeiro lugar seria preciso mudar a Constituição... Não era a nossa tarefa e muito menos a do Senado.
Isto apenas para mostrar como certas críticas são fruto apenas da ignorância dos textos constitucionais vigentes. O código só abrange aquilo que já está, de certa maneira, consolidado à luz da experiência. É o motivo pelo qual concordamos com aqueles que, em determinado momento, entenderam que não deveria fazer parte do código a Lei da Sociedade por Ações. Não apenas em razão das mutações a que ela está continuamente sujeita, como ainda agora o demonstra a recente lei que está dando campo para tantas discussões, mas também porque a lei que rege as sociedades anônimas está diretamente vinculada ao mercado de capitais, o que transcende os lindes da Lei Civil.
O que não se compreende é que, tendo o Senado Federal aprovado o projeto com emendas, só podendo estas ser objeto de apreciação pela Câmara dos Deputados, certos críticos, que se mantiveram todos estes anos calados, vêm, agora, apontar pretensos erros ou omissões, que, se porventura existentes, somente poderiam ser objeto de leis autônomas ou posteriores ao novo Código Civil. Isto tudo apenas demonstra que não se tem em vista aperfeiçoar a legislação do País, mas tão somente mostrar tardia e irrelevante cuidado, sob o qual não raro se ocultam preconceitos e prevenções.
Por outro lado, críticas surgiram em flagrante conflito com o texto da proposta, evidenciando, assim, que nem sequer houve preocupação de leitura com a atenção e a serenidade que exigem os estudos jurídicos, servindo o projeto apenas de pretexto para promoção pessoal.
Quanto à alegação de que o princípio de "socialidade" acaba gerando a massificação e sacrificando a individualidade, componente essencial de um Código Civil, trata-se de tolice tão evidente que não merece nem comporta discussão.
Esclarecidas essas questões, não é demais recordar que os assuntos fundamentais da nova codificação foram por mim explanados, assim como pelos demais co-autores do projeto, nas respectivas exposições de motivos. No que me toca, permito-me lembrar que publiquei, em 1986, através da Editora Saraiva, a primeira edição do presente livro, onde os interessados puderam encontrar as diretrizes fundamentais a que estou fazendo referência. A mesma coisa se poderá dizer com relação ao ilustre ministro Moreira Alves, que, na mesma época, tratou também do projeto, em volume pertinente à Parte Geral. De modo que já há bibliografia auxiliar, além das publicações feitas pelo Congresso Nacional, que são parte componente essencial do projeto, sobretudo depois que ele foi aprovado pela Câmara dos Deputados e em seguida pelo Senado Federal, com douto e minucioso parecer de autoria do senador Josaphat Marinho, incluído na presente edição.

A tramitação no Senado Federal

No Senado logo nos defrontamos com várias dificuldades. É que a obra de codificação coincidiu com o retorno do País à ordem constitucional e, por conseguinte, com a idéia de uma Assembléia Nacional Constituinte, que era apresentada, consoante já salientei, como uma fonte de possíveis alterações profundas que iriam se refletir sobre o projeto. Isto teve como conseqüência estancar o processo de sua apreciação, até que fosse feita a nova Constituição. A situação não impediu, no entanto, que no Senado fossem apresentadas, no prazo regimental, 366 emendas, cuja apreciação iria demandar mais de doze anos.
Isto não obstante, o trabalho no Senado é merecedor de justa admiração, merecendo referência especial a decisiva resolução do Relator Geral, Senador Josaphat Marinho, de chamar a si a responsabilidade de apreciação das emendas, submetendo, a posteriori, as suas propostas à consideração dos Relatores Especiais.
Vê, assim, o leitor, que o projeto não é fruto de improvisação e nem tampouco representa um trabalho desde logo solidificado e definitivo. Mas, ao contrário, veio sendo corrigido e completado ao longo do tempo, de tal maneira que novas emendas e novas sugestões foram sempre bem recebidas e objeto de nossa análise. Apesar da morte da maior parte dos membros da comissão, o ministro Moreira Alves e eu, como remanescentes mais ativos desta comissão, continuamos a dar nossa colaboração, emitindo pareceres e formulando novas propostas no Senado Federal, que serviam de base à proposta finalmente apreciada pela Câmara Alta, após o parecer do mencionado Relator Geral(*).

O novo Direito de Família e o de Sucessões

Já havíamos dado grande passo à frente no sentido da igualdade dos cônjuges. Isso ficou ainda mais acentuado na Constituição, sobretudo no que se refere à situação dos filhos. Porquanto a Carta Política de 88 eliminou toda e qualquer diferença entre filhos legítimos, naturais, adulterinos, espúrios ou adotivos.
Essa opção constitucional implicou evidentemente reexame das emendas oferecidas por Nelson Carneiro, de tal maneira que foi feita plena atualização da matéria em consonância com as novas diretrizes da Carta Magna vigente, também no que se refere à "união estável", a nova entidade familiar que surge ao lado do matrimônio civil, corrigindo-se o erro da legislação em vigor que a confunde com o concubinato.
Note-se que, na Parte Geral, atende-se, outrossim, às circunstâncias da vida contemporânea, adotando-se novos critérios para estabelecer a maioridade, que baixou de 21 para 18 anos. É sabido que, em virtude da Informática e da expansão cultural, as pessoas amadurecem mais cedo do que antes. Essa mudança fundamental refletiu-se também no campo da responsabilidade relativa, que passou a ser de 16 anos, correspondendo, aliás, à situação atual do adolescente de 16 anos, que é até eleitor em todos os planos da política nacional desde o Município até a União.
Os exemplos ora dados já são mais do que suficientes para demonstrar que houve grande preocupação no sentido de aproveitar as emendas do Senado para a atualização do projeto. E isto se repetiu nos poderes conferidos aos cônjuges, em absoluta igualdade, razão pela qual, como já foi dito, propus, e foi aceito pelo senador Josaphat Marinho, que, em vez de pátrio poder, se falasse em "poder familiar", que é uma expressão mais justa e adequada, porquanto os pais exercem esse poder em função dos interesses do casal e da prole.
No que se refere à igualdade dos cônjuges, é preciso atentar ao fato de que houve alteração radical no tocante ao regime de bens, sendo desnecessário recordar que anteriormente prevalecia o regime da comunhão universal, de tal maneira que cada cônjuge era meeiro, não havendo razão alguma para ser herdeiro. Tendo já a metade do patrimônio, ficava excluída a idéia de herança. Mas, desde o no momento em que passamos do regime da comunhão universal para o regime parcial de bens com comunhão de aqüestos, a situação mudou completamente. Seria injusto que o cônjuge somente participasse daquilo que é produto comum do trabalho, quando outros bens podem vir a integrar o patrimônio e ser objeto de sucessão. Nesse caso, o cônjuge, quando casado no regime da separação parcial de bens (note-se) concorre com os descendentes e com os ascendentes até a quarta parte da herança. De maneira que são duas as razões que justificam esse entendimento: de um lado, uma razão de ordem jurídica, que é a mudança do regime de bens do casamento; e a outra, a absoluta equiparação do homem e da mulher, pois a grande beneficiada com tal dispositivo, é, no fundo, mais a mulher do que o homem.
Por outro lado, em matéria sucessória, não é mais lícito ao testador vincular bens da legítima a seu bel prazer. Ele deve explicitar o motivo que o leva a estabelecer a cláusula limitadora do exercício de direitos pelo seu herdeiro, podendo o juiz, em certas circunstâncias, apreciar a matéria para verificar se procede a justa causa invocada.

Adequação a exigências técnicas

Há, além disso, necessidade de levar em conta as alterações profundas ocorridas no plano técnico e operacional. Por essas razões, por exemplo, toda a matéria de escrituração empresarial passa por uma transformação fundamental para que tudo possa ser feito através de processos eletrônicos, superando-se os entraves formalistas em matéria de contabilidade e gestão da empresa.
O mesmo espírito pragmático preside a outros aspectos da vida empresarial, notadamente no que se refere às questões disciplinadas na nova parte especial inserida no projeto, relacionada ao Direito de Empresa, empregada a palavra "empresa" no sentido de atividade desenvolvida pelos indivíduos ou pelas sociedades a fim de promover a produção e a circulação das riquezas, dos bens e dos serviços.
É esse objetivo fundamental que rege os diversos tipos de sociedades empresariais, não sendo demais realçar que, consoante terminologia adotada pelo projeto, as sociedades são sempre de natureza empresarial, enquanto que as associações são sempre de natureza civil. Parece uma distinção de somenos, mas de grandes consequências práticas, porquanto cada uma delas é governada por princípios distintos.
Uma exigência básica de operabilidade norteia, portanto, toda a matéria de Direito de Empresa, adequando-o aos imperativos da técnica contemporânea no campo econômico-financeiro, sendo estabelecidos preceitos que atendem tanto à livre iniciativa como aos interesses do consumidor..

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É inegável a urgente necessidade de se atualizar o código atual em várias outras questões. Sendo, por exemplo, as sociedades por ações estruturas complexas que exigem amplos e custosos quadros funcionais, a disciplina normativa das cotas de responsabilidade limitada passou a ter uma importância cada vez mais acentuada. De início, as sociedades por cotas eram relativas a pequenas empresas e ainda exercem essa função, mas, hoje em dia, esse tipo de sociedade abrange um número imenso de agremiações, até chegarmos às "holdings" ou controladoras das grandes estruturas empresariais. Na verdade vemos sociedades anônimas que se entrelaçam para formar complexos econômicos sujeitos a uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada.
Por todas essas razões foi dada uma nova estrutura, bem mais ampla e diversificada, ao instituto da sociedade por cotas de responsabilidade limitada, sendo certo que a lei especial em vigor está completamente ultrapassada, achando-se a matéria regida mais segundo princípios de doutrina e à luz de decisões jurisprudenciais. A propósito desse assunto, para mostrar o cuidado que tivemos em atender à Constituição, lembro que a lei atual sobre sociedades por cotas de responsabilidade limitada permite que se expulse um sócio que esteja causando danos à empresa, bastando para tanto mera decisão majoritária. Fui dos primeiros juristas a exigir que se respeitasse o princípio de justa causa, entendendo que a faculdade de expulsar o sócio nocivo devia estar prevista no contrato, sem o que haveria mero predomínio da maioria. Ora, a Constituição atual declara no artigo 5° que ninguém pode ser privado de sua liberdade e de seus bens sem o devido processo legal e sem o devido contraditório. Em razão desses dois princípios constitucionais, mantivemos a possibilidade da eliminação do sócio prejudicial, que esteja causando dano à sociedade, locupletando-se às vezes à custa do patrimônio social, mas lhe asseguramos, por outro lado, o direito de defesa, de maneira que o contraditório se estabeleça no seio da sociedade e depois possa continuar por vias judiciais. Está-se vendo, portanto, a ligação íntima que se procurou estabelecer entre as estruturas constitucionais, de um lado, e aquilo que chamamos de legislação infraconstitucional, na qual o Código Civil se situa como o ordenamento fundamental.
Outra inovação que não pode ser olvidada diz respeito ao testamento particular, figura jurídica praticamente inexistente, pois as exigências e formalidades estabelecidas no Código Civil atual para a sua validade é de tal ordem que praticamente não há quem dele faça uso, com grande dano para os indivíduos e a sociedade. Pelo projeto, ao contrário, o testamento particular poderá ser redigido à mão pelo próprio testador, ou mediante qualquer processo de digitação, bastando que ele seja lido e assinado perante três testemunhas que também o subscreverão, conforme proposta que enderecei ao Relator Geral no Senado.
Como se vê, foi nosso constante empenho, fixar normas jurídicas de maneira simples e segura, visando-se, a um só tempo, o bem individual e o bem comum.