Quando, em 1983, Norberto Bobbio veio
ao Brasil, a convite da Universidade de Brasília, coube-me a honra de saudá-lo
em nome dos pensadores brasileiros. Lembrei, de início, que tivera a
iniciativa, na década de 1960, de tornar mais conhecido seu pensamento entre nós
graças à inclusão, na “Coleção Direito e Cultura”, por mim dirigida na
Editora Saraiva, de bem escrita monografia de autoria do padre Astério de
Campos sobre suas teorias.
Desde então fiquei cada vez mais
convencido de que Bobbio nunca se preocupou com a qualificação de sua própria
posição filosófica, preferindo o papel de maior esclarecedor e mentor das idéias
jurídicas e políticas fundamentais, visando sempre o aprimoramento da
democracia.
Assim sendo, declarei não
considera-lo um neopositivista, como geralmente se fazia, mas sim um filósofo
que timbrava em extrair o suco essencial das doutrinas, sem se filiar a nenhuma
delas.
Na resposta por ele dada e que muito
me sensibilizou, concordou o mestre itálico com a minha observação, chegando
a se considerar menos um filósofo do que um teórico da ciência, sem ter tido
jamais a pretensão de “formular concepções gerais da realidade” (cfr.
Carlos Henrique Cardim, organizador – Bobbio no Brasil – Ed.
Universidade de Brasília, 2001, pág. 31).
Talvez
terá sido a sua maior contribuição à história da cultura a sua constante
preocupação no sentido de revelar o essencial das doutrinas fundamentais.
Ninguém, a meu ver, soube penetrar tão profundamente na essência do
pensamento filosófico-jurídico de Kant, sem se tornar kantista, ou de Hegel ou
Marx sem ser hegeliano ou marxista.
Preferia ser, como então asseverou,
um homem do Renascimento, “um anão sobre os ombros dos gigantes”, podendo,
assim, ver mais ou melhor do que eles, a cuja existência devemos ser
eternamente gratos. Essa é uma das atitudes mais complexas e difíceis,
constituindo a opção pelo amor da idéia como idéia, tão somente em função
dos valores supremos do processo cultural, para o progresso impessoal da ciência.
Uma das obras mais aliciantes de
Benedetto Croce é O que está vivo e o que está morto na filosofia de
Hegel, na qual é apresentado o que há de profundo e perene no idealismo
hegeliano, sem necessidade de se tornar adepto dessa corrente de pensamento.
Pode-se dizer que Bobbio aplicou essa diretriz em relação aos fundadores da ciência
jurídico-política atual, dispensando especial atenção às condições
peculiares de cada momento histórico.
Na realidade, ele foi além da mera
apreciação doutrinária dos livros e monografias dos autores, porquanto
aplicou os mesmos critérios relativistas no exame da época em que eles
atuaram, daí resultando um historicismo aberto às inovações imprevisíveis
da sociedade e da ciência, livre dos obstáculos e impedimentos apontados por
Karl Popper em sua conhecida crítica do historicismo.
O que mais me seduz na obra de Bobbio
é a sua crítica histórica, a sua capacidade de captar o que há de
mais significativo e fecundo nas produções filosóficas e científicas, sempre
em íntima e concreta correlação com as necessidades individuais e coletivas.
Ele, por exemplo, soube ver, em
Hobbes, mais do que um teórico do Leviathan, do Estado autoritário
(como via de regra se fazia), para nos revelar um pensador empenhado em
demonstrar a positividade essencial do poder, motivo pelo qual tanto o
direito como a política não podem deixar ser estudados como ciências
positivas. Nesse sentido, lembrava ele o ensinamento hobbesiano de que “auctoritas,
non sapientia, facit leges” (a
autoridade, não a sabedoria, faz as leis). Era, em suma, toda uma nova visão
de Hobbes que se descortinava graças à sua aguda interpretação.
Nessa ordem de idéias, em seu
pronunciamento em Brasília, Bobbio confessava que se considerava “positivista
no sentido jurídico e não no sentido filosófico”, acrescentando que o
neopositivismo foi para ele uma experiência útil, visto parecer-lhe que os
instrumentos lingüísticos que ele fornece à análise do Direito são da maior
relevância para a Hermenêutica Jurídica.
O mesmo equilíbrio se nota no
concernente à “Teoria Pura do Direito” de Hans Kelsen, cuja contribuição
maior seria constituída pela demonstração de que no direito o essencial é
a sua dimensão normativa, parecendo-lhe secundário o fato de ser esta
apresentada de maneira formalista, sob a influência de Kant. O importante no
kelsenismo, no seu entender, é a visão do ordenamento jurídico como um
escalonamento normativo, válido de per si e não como criação do poder
estatal.
No que se refere à “teoria
tridimensional do direito” – cujos pressupostos me pareciam presentes em seu
pensamento – Bobbio declarou ter-se aproximado de minha posição, pela
seguinte razão: “Teoria tridimensional quer dizer exatamente que o mundo do
direito tem de ser visto sob três pontos de vista inseparáveis:o ponto de
vista dos valores, o ponto de vista das normas e o ponto de vista dos fatos. Daí
surge a filosofia do direito propriamente dita, ou seja, a filosofia dos valores
jurídicos, a teoria geral do direito que se ocupa do ordenamento jurídico, e a
sociologia do direito que se ocupa do direito como fato. Creio que se se quiser
ter uma visão completa da experiência jurídica, será necessário ter em
vista esses três pontos de vista. A diferença está em que jamais teorizei
essas três dimensões do direito, embora as tenha aplicado, sem nunca ter
elaborado uma teoria a respeito delas” (obra citada, pág. 30).
Com esses três exemplos, penso ter
demonstrado que o que caracteriza a crítica histórica de Norberto Bobbio é a constante
procura dos elementos essenciais, evitando generalidades que possam suscitar
dúvidas.
Por outro lado, esse empenho pelo
essencial nunca implicou na aceitação de qualquer reducionismo, perdendo-se o
pesquisador na busca de um único elemento para explicar experiências complexas
como as do direito e da democracia.
Nesse sentido, poder-se-á talvez
afirmar que, em sua longa vida criadora, nenhuma aspiração terá sido maior do
que a persistente indagação de Bobbio quanto à essência da Democracia,
que uns fundam na liberdade, enquanto outros invocam a igualdade.
Para ele, e é um dos mais relevantes
legados de seu fecundo magistério, liberdade e igualdade são valores
necessariamente complementares, o que o fez – a exemplo do que já o fizera
Carlos Rosselli, na longínqua década de 1930 – optar pelo “socialismo
liberal”, após várias experiências, intensamente vividas, como a do
marxismo e da social-democracia. Liberalismo e socialismo, a seu ver, não são
idéias ou ideais contrapostos, mas que devem, ao contrário, se conciliar entre
si, na medida que o permitam as variáveis situações históricas de cada povo.
Essa conclusão não o impedia de
considerar-se um “homem de esquerda”, posição que, a seu ver, se
justificará até e enquanto houver tantas desigualdades e exclusões sociais
como as que ainda existem. No meu entendimento, todavia, se liberalismo e
socialismo convergem no sentido de uma solução conciliadora, tanto o
“socialismo liberal” como o “liberalismo social”, de minha preferência,
apontam para o centro superador do conflito das ideologias. É essa a
conclusão a que chego em meu livro O Estado Democrático de Direito e o
conflito das ideologias (Saraiva, 2a edição, 1999).
31.I.2004